terça-feira, 20 de agosto de 2013

A comunicação científica numa sociedade democrática

COBERTURA DE CIÊNCIA

A comunicação científica numa sociedade democrática

Por Leonardo Siqueira em 20/08/2013 na edição 760
 
Um dos grandes desafios da cobertura de ciência é traduzir a linguagem científica para o público leigo. O problema é que o jornalista, no intuito de facilitar o entendimento do relato científico que às vezes sequer entende, entrega ao público uma informação equivocada. Outro erro comum é a simples transcrição do conteúdo especializado, sem nenhuma contextualização.
Comunicação de ciência não é apenas transferir conhecimento ou informação. Talvez este tipo de pensamento explique o motivo pelo qual a cobertura de Ciência, Tecnologia e Informação (C, T & I) ainda seja deficitária na imprensa brasileira. Conforme argumenta o educador Carlos Vogt, a comunicação científica aproxima, compartilha e estimula. Neste contexto, ela também exerce um papel social, que é o de municiar cidadãos comuns, que não detêm o “poder”, pois informação também é poder, com recursos capazes de envolvê-los na discussão de temas relevantes para a sociedade.
O primeiro passo para a popularização de ciência, termo que Vogt usa com propriedade, é a conscientização, por parte dos jornalistas e comunicadores de ciência, de seu papel de “mediadores” entre os interesses e necessidades da comunidade científica e o público leigo. A tarefa é desafiadora: traduzir e contextualizar o relato científico de forma palatável e cativante ao leitor que não está familiarizado com os jargões da ciência. Isso tudo, é claro, sem perder de vista o rigor científico.
Ferramenta para o exercício da cidadania
A segunda edição do livro A Field Guide for Science Writers, publicado pela Oxford University Press, traz algumas dicas em relação ao exercício do jornalismo científico. No prefácio do livro, os editores introduzem a relevância da cobertura de ciência e dão algumas características do jornalista científico ou “escritor de ciência”, termo que revela a importância que os profissionais de imprensa têm ao exercer o papel de mediadores entre os interesses da comunidade científica e os da sociedade, mesmo que a última não saiba o potencial político que a informação científica pode desempenhar. “Mais do que em qualquer outro campo da reportagem, equilíbrio em ciência é mais do que simplesmente distribuir um número igual de colunas e centímetros para as aspas de cada lado. Equilíbrio em ciência requer guia autoral, requer contexto e conhecimento quando determinados pontos de vista simplesmente precisam ser ignorados.”
Pesquisas mostram que a percepção pública da ciência e tecnologia tem aumentado sensivelmente no Brasil. Nesse sentido, a formação de jornalistas especializados na cobertura de C, T & I tem contribuído para a ampliação e a melhoria da qualidade da divulgação científica na mídia. O que, por sua vez, tem um impacto significativo na percepção que o público tem da ciência. O fato é que o surgimento da ciência no Brasil ainda é um fenômeno recente, segundo aponta a doutora em História Social pela USP, Germana Fernandes Barata. A especialização do conhecimento e o investimento na criação de institutos de pesquisa, escolas e faculdades, por exemplo, ocorreu apenas a partir da primeira metade do século 20.
Já na década de 1980 pesquisas apontavam os benefícios, bem como o potencial político e transformador da C, T & I em áreas estratégicas para o desenvolvimento econômico e social. Esses benefícios já são conhecidos pelos brasileiros, segundo revela uma pesquisa de opinião pública realizada em 1987 pelo Instituto Gallup de Opinião Pública. Intitulada “O que o brasileiro pensa da ciência e tecnologia”, a pesquisa indicou que “tanto o cientista como a Ciência desfrutam de grande consideração e respeito junto à população brasileira” (Ministério da Ciência e Tecnologia, 1987). Já naquele ano, o governo reconhecia a importância e o papel da divulgação científica como ferramenta fundamental para o exercício da cidadania.
Dois editais da Finep
Quando o jornalista de ciência entende e reconhece o papel social e democrático que a comunicação científica exerce, pode informar a sociedade e formar nela uma consciência cidadã e de engajamento com as questões que envolvem, entre outros aspectos, políticas públicas de ciência.
Áreas vitais para a vida humana, como saúde e alimentação, por exemplo, também são objeto de aplicações tecnológicas, mas cujas decisões, muitas vezes, não são decididas em conjunto com a sociedade. O uso de células-tronco embrionárias, os avanços da biotecnologia e as discussões éticas sobre os limites da tecnologia de DNA recombinante, por exemplo, ainda são temas pouco conhecidos pela população em geral.
No caso específico da técnica de DNA recombinante, que une o DNA de fontes não homólogas em geral de organismos diferentes, os benefícios a ela associados podem resultar na melhoria da qualidade de vida de hemofílicos, por exemplo. Não por acaso, notícia, ou melhor, nota divulgada pelo Estadão em 2007 informa que “a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) aceita inscrições para dois editais com valor total de R$ 12,8 milhões. O primeiro, de R$ 2,8 milhões, será encerrado na quinta-feira. Ele busca projetos em escala piloto que visem obter fatores 8 e 9 da coagulação sanguínea por DNA recombinante. Atualmente não existe a produção desses insumos no país”.
Os avanços da ciência e a cidadania
No site do veículo, uma rápida busca pelo termo “DNA recombinante” mostra a escassez de notícias relacionadas ao tema, o que, mais uma vez, evidencia e justifica a necessidade de formar jornalistas especializados na divulgação e comunicação científica.
Desenvolver e divulgar a ciência com responsabilidade social e compromisso público não é uma tarefa restrita aos cientistas. Cabe aos divulgadores de ciência, em especial aos jornalistas, que adoram o título de “fiscalizadores” do poder público, investigar os avanços da ciência e traduzir aos cidadãos os desafios, limites e avanços da ciência e tecnologia. Só assim, de posse de informações e fatos devidamente contextualizados, o cidadão poderá participar de forma mais efetiva e democrática da tomada de decisões no campo da ciência.
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Leonardo Siqueira é jornalista, especialista em Comunicação Empresarial (Umesp) e pós-graduando em Jornalismo Científico, Campinas, SP

domingo, 10 de março de 2013

Conhecer o mundo: Mitologia, religião, ciência, filosofia, senso com

LER E RESUMIR EM 30 LINHAS.


Assunto: Filosofia
Antonio Carlos Olivieri, Da Página 3 Pedagogia & Comunicação

Há muitos modos de se conhecer o mundo, que dependem da situação do sujeito diante do objeto do conhecimento. Ao olhar as estrelas no céu noturno, um índio caiapó as enxerga a partir de um ponto de vista bastante diferente do de um astrônomo.
O caiapó vê nas estrelas as fogueiras que alguns de seus deuses acendem no céu para tornar a noite mais clara. O cientista vê astros que têm luz própria e que formam uma galáxia. O índio compreende e conhece as estrelas a partir de um ponto de vista mitológico ou religioso. O astrônomo as compreende e conhece a partir de um ponto de vista científico.
mitologia, a religião e a ciência são formas de conhecer o mundo. São modos do conhecimento, assim como o senso comum, a filosofia e a arte. Todos eles são formas de conhecimento, pois cada um, a seu modo, desvenda os segredos do mundo, explicando-o ou atribuindo-lhe um sentido. Vamos examinar mais de perto cada uma dessas formas de conhecimento.

O mito e a religião
O mito proporciona um conhecimento que explica o mundo a partir da ação de entidades - ou seja, forças, energias, criaturas, personagens - que estão além do mundo natural, que o transcendem, que são sobrenaturais.

Veja, por exemplo, o mito através do qual os antigos gregos explicavam a origem do mundo:
No princípio era o Caos, o Vazio primordial, vasto abismo insondável, como um imenso mar, denso e profundo, onde nada podia existir. Dessa oca imensidão sem onde nem quando, de um modo inexplicável e incompreensível, emergiram a Noite negra e a Morte impenetrável. Da muda união desses dois entes tenebrosos, no leito infinito do vácuo, nasceu uma entidade de natureza oposta à deles, o Amor, que surgiu cintilando dentro de um ovo incandescente.
Ao ser posto no regaço do Caos, sua casca resfriou e se partiu em duas metades que se transformaram no Céu e na Terra, casal que jazia no espaço, espiando-se em deslumbramento mútuo, empapuçados de amor. Então, o Céu cobriu e fecundou a Terra, fazendo-a gerar muitos filhos que passaram a habitar o vasto corpo da própria mãe, aconchegante e hospitaleiro.
Assim como o mito, a religião, ou melhor, as religiões também apresentam uma explicação sobrenatural para o mundo. Para aderir a uma religião, é obrigatório crer ou ter fé nessa explicação. Além disso, é uma parte fundamental da crença religiosa a fé em que essa explicação sobrenatural proporciona ao homem uma garantia de salvação, bem como prescreve maneiras ou técnicas de obter e conservar essa garantia, que são os ritos, os sacramentos e as orações.
Antes de seguir em frente, convém esclarecer que não vem ao caso discutir aqui a validade do conhecimento religioso. Em matéria de provas objetivas, se a religião não tem como provar a existência de Deus, a ciência também não tem como provar a Sua inexistência. E, a propósito disso, vale a pena apresentar uma outra narrativa filosófica:
Certa vez, um cosmonauta e um neurologista russos discutiam sobre religião. O neurologista era cristão, e o cosmonauta não. “Já estive várias vezes no espaço”, gabou-se o cosmonauta, “e nunca vi nem Deus, nem anjos”. “E eu já operei muitos cérebros inteligentes”, respondeu o neurologista, “e também nunca vi um pensamento”.
O mundo de Sofia, Jostein Gaardner, Cia. das Letras, 1995
A ciência
A ciência procura descobrir como a natureza "funciona", considerando, principalmente, as relações de causa e efeito. Nesse sentido, pretende buscar o conhecimento objetivo, isto é, que se baseia nas características do objeto, com interferência mínima do sujeito. Veja, por exemplo, a seguinte descrição científica:

O coração é um músculo oco, em forma de cone achatado com a base virada para cima e a ponta voltada para baixo, do tamanho aproximado de um punho fechado. O músculo cardíaco é chamado de miocárdio. Sua superfície interna é recoberta por uma membrana delgada, o endocárdio. Sua superfície externa tem um invólucro fibro-seroso, o pericárdio.
Grande Enciclopédia Larousse Cultural, 1998
Quando se fala em "mínima interferência do sujeito", quer se dizer que a descrição de coração proposta acima é válida independentemente do estudioso de anatomia que a formulou.
A definição tradicional de ciência pressupõe que ela seja um modo de conhecimento com absoluta garantia de validade. A ciência moderna já não tem a pretensão ao absoluto, mas ao máximo grau de certeza.
Quanto à garantia de validade, ela pode consistir:


  • Na descrição, conforme o exemplo acima;
  • Na demonstração, como no caso de um teorema matemático;
  • Na corrigibilidade, ou seja, na possibilidade de corrigir noções e conceitos, a partir dos avanços da própria ciência.
    Finalmente, é importante esclarecer que a aplicação da ciência resulta na tecnologia, ou no conhecimento tecnológico.

    O senso comum O senso comum ou conhecimento espontâneo é a primeira compreensão do mundo, baseada na opinião, que não inclui nenhuma garantia da própria validade. Para alguns filósofos, o senso comum designa as crenças tradicionais do gênero humano, aquilo em que a maioria dos homens acredita ou devem acreditar.
    A mais completa tradução do senso comum talvez sejam os ditados populares. A título de exemplo, eis alguns:

  • "Cada cabeça, uma sentença."
  • "Quem desdenha quer comprar."
  • "Quem ri por último ri melhor."
  • "A pressa é a inimiga da perfeição."
  • "Se conselho fosse bom, não era dado de graça."

    A filosofia Para Platão, a filosofia é o uso do saber em proveito do homem. Isso implica a posse ou aquisição de um conhecimento que seja, ao mesmo tempo, o mais válido e o mais amplo possível; e também o uso desse conhecimento em benefício do homem. Essa definição, porém, exige a uma definição de benefício, que por sua vez exige uma definição de Bem. Para saber o que é o Bem, entretanto, também é necessário descobrir o que é a Verdade.
    Alguns filósofos, definem a filosofia como a busca do Bem, da Verdade, do Belo e de como os homens podem conhecer essas três entidades. Portanto, a filosofia toma para si a árdua tarefa de debater problemas ou especular sobre problemas que ainda não estão abertos aos métodos científicos: o bem e o mal, o belo e o feio, a ordem e a liberdade, a vida e a morte.
    Vamos a um exemplo de texto filosófico, em que um filósofo norte-americano, John Dewey, procura refletir justamente sobre o que é senso comum:
    Visto que os problemas e as indagações em torno do senso comum dizem respeito às interações entre os seres vivos e o ambiente, com o fim de realizar objetos de uso e de fruição, os símbolos empregados são determinados pela cultura corrente de um grupo social. Eles formam um sistema, mas trata-se de um sistema de caráter mais prático que intelectual. Esse sistema é constituído por tradições, profissões, técnicas, interesses e instituições estabelecidas no grupo. As significações que o compõem são efeito da linguagem cotidiana comum, com a qual os membros do grupo se intercomunicam.
    Lógica, VI, 6, J. Dewey
    Tradicionalmente, a filosofia se divide em cinco áreas:

    • Lógica, que estuda o método ideal de pensar e investigar;
    • Metafísica, que estuda a natureza do Ser (ontologia), da mente (psicologia filosófica) e das relações entre a mente e o ser no processo do conhecimento (epistemologia);
    • Ética, que estuda o Bem, o comportamento ideal para o ser humano;
    • Política, que estuda a organização social do homem;
    • Estética, que estuda a beleza e que pode ser chamada de filosofia da Arte.

    Convém concluir lembrando que a ciência e o pensamento científico se originaram com a filosofia na Grécia da Antiguidade. Com o passar do tempo, certas áreas da especulação filosófica, como a matemática, a física e a biologia ganharam tal especificidade que se separaram da filosofia.

    A arte O conhecimento proporcionado pela arte não nos dá o conhecimento objetivo de uma coisa qualquer, mas o de um modo particular de compreendê-la, um modo que traduz a sensibilidade do artista. Trata-se, portanto, de um conhecimento produzido pelo sujeito e pela subjetividade.
    Veja por exemplo o seguinte soneto, escrito pelo poeta bahiano do século 17,Gregório de Matos, no qual ele dá a sua "visão" do braço de uma imagem do Menino Jesus que havia sido quebrada por holandeses protestantes, quando da invasão da cidade de Salvador:
    O todo sem a parte não é todo;
    A parte sem o todo não é parte;
    Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
    Não se diga que é parte, sendo o todo.
    Em todo sacramento está Deus todo,
    E todo assiste inteiro em qualquer parte,
    E feito em partes todo em toda a parte
    Em qualquer parte sempre fica todo.
    O braço de Jesus não seja parte,
    Pois que feito Jesus em partes todo,
    Assiste cada parte em sua parte.
    Não se sabendo parte deste todo,
    Um braço que lhe acharam, sendo parte,
    Nos diz as partes todas deste todo.

  • Antonio Carlos Olivieri, Da Página 3 Pedagogia & Comunicação é escritor, jornalista e diretor da Página 3 Filosofia & Comunicação.

    Filosofia e felicidade

    LER E RESUMIR.
    NO MÁXIMO 30 LINHAS.

    Filosofia e felicidade: O que é ser feliz segundo os grandes filósofos do passado e do presente
    O que é felicidade? Provavelmente, cada pessoa que resolver responder a esta pergunta apresentará uma resposta própria, pois a felicidade, num certo sentido, é algo individual, pessoal e intransferível. Por outro lado, há uma ideia de felicidade que pertence ao senso comum e é compartilhada pela esmagadora maioria das pessoas: felicidade é ter saúde, amor, dinheiro suficiente, etc. Além disso, a ideia de felicidade não é uma coisa recente. Com certeza, ela acompanha o ser humano há muito tempo e faz parte de sua história.
    Sendo assim, é possível traçar a evolução histórica dessa ideia, se nos debruçarmos sobre a disciplina que sempre se dedicou a investigar nossas ideias, de modo a defini-las e esclarecê-las: a filosofia. Na verdade, a ideia de felicidade tem grande importância para a origem da filosofia. Ela faz parte das primeiras reflexões filosóficas sobre ética, que foram elaboradas na Grécia antiga. Vamos, então, acompanhar a evolução histórica dessa ideia fazendo uma viagem pela história da filosofia.
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    A referência filosófica mais antiga de que se dispõe sobre o tema é um fragmento de um texto de Tales de Mileto, que viveu entre as últimas décadas do século 7 a.C. e a primeira metade do século 6 a.C. Segundo ele, é feliz “quem tem corpo são e forte, boa sorte e alma bem formada”. Vale atentar para a expressão “boa sorte”, pois disso dependia a felicidade na visão dos gregos mais antigos.
    Bom demônio
    Em grego, felicidade se diz “eudaimonia”, palavra que é composta do prefixo “eu”, que significa “bom”, e de “daimon”, “demônio”, que, para os gregos, é uma espécie de semi-deus ou de gênio, que acompanhava os seres humanos. Ser feliz era dispor de um “bom demônio”, o que estava relacionado à sorte de cada um. Quem tivesse um “mau demônio” era fatalmente infeliz.
    Não há dúvida de que, entre os séculos 10 a.C. e 5. a.C, o pensamento grego tende a considerar os maus demônios mais frequentes do que os bons e apresentar uma visão pessimista da existência humana. Não é por acaso que os gregos inventaram a tragédia. Uma expressão radical desse pessimismo nos é fornecido por um velho provérbio grego, segundo o qual “a melhor de todas as coisas é não nascer”.
    Foi a filosofia que rompeu com essa visão pessimista e procurou estabelecer orientações para que o homem procurasse a felicidade. Demócrito de Abdera(aprox. 460 a.C./370 a.C.) julgava que a felicidade era “a medida do prazer e a proporção da vida”. Para atingi-la, o homem precisava deixar de lado as ilusões e os desejos e alcançar a serenidade. A filosofia era o instrumento que possibilitava esse processo.
    Virtude e justiça
    Sócrates (469 a.C./399 a.C.) deu novo rumo à compreensão da ideia de felicidade, postulando que ela não se relacionava apenas à satisfação dos desejos e necessidades do corpo, pois, para ele, o homem não era só o corpo, mas, principalmente, a alma. Assim, a felicidade era o bem da alma que só podia ser atingido por meio de uma conduta virtuosa e justa.
    Para Sócrates, sofrer uma injustiça era melhor do que praticá-la e, por isso, certo de estar sendo justo, não se intimidou nem diante da condenação à morte por um tribunal ateniense. Cercado pelos discípulos, bebeu a taça de veneno que lhe foi imposta e parecia feliz a todos os que o assistiram em seus últimos momentos.
    Entre os discípulos de Sócrates, Antístenes (445 a.C./365 a.C.) acrescentou um toque pessoal à ideia de felicidade de seu mestre, considerando que o homem feliz é o homem autossuficiente. A ideia de autossuficiência (que, em grego, se diz “autarquia”,) continuará diretamente vinculada à de felicidade nos setecentos anos seguintes.
    Uma função da alma
    Mas o maior discípulo de Sócrates, que efetivamente levou a especulação filosófica adiante de onde a deixara seu mestre, foi Platão (348 a.C./347 a.C.), o qual considerava que todas as coisas têm sua função. Assim, como a função do olho é ver e a do ouvido, ouvir, a função da alma é ser virtuosa e justa, de modo que, exercendo a virtude e a justiça, ela obtem a felicidade.
    É importante deixar claro que noções como virtude e justiça integram uma vertente do pensamento filosófico chamada Ética, que se dedica à investigação dos costumes, visando a identificar os bons e os maus. Para Platão, a ética não estava limitada aos negócios privados, devendo ser posta em prática também nos negócios públicos. Desse modo, o filósofo entendia que a função do Estado era tornar os homens bons e felizes.
    A ligação entre ética e política estará ainda mais definida na obra do mais importante discípulo de Platão, Aristóteles (384 a.C./322 a.C.), o qual dedicou todo um livro à questão da felicidade: a “Ética a Nicômaco” (que é o nome de seu filho, para quem o livro foi escrito). Amigo de Platão, mas, em suas próprias palavras, “mais amigo da verdade”, Aristóteles criticou o idealismo do mestre, reconhecendo a necessidade de elementos básicos, como a boa saúde, a liberdade (em vez da escravidão) e uma boa situação socioeconômica para alguém ser feliz.
    Felicidade intelectual
    Por outro lado, a partir de uma série de raciocínios que têm como base o fato de o homem ser um animal racional, Aristóteles conclui que a maior virtude de nossa “alma racional” é o exercício do pensamento, pelo quê, segundo ele, a felicidade chega a se identificar com a atividade pensante do filósofo, a qual, inclusive, aproxima o ser humano da divindade.
    Sem perder de vista a aplicação prática de suas ideias, Aristóteles considera a política como uma extensão da ética e, nesse sentido, para ele também é uma função do Estado criar condições para o cidadão ser feliz. O Estado que o filósofo tinha em mente, porém, era a “polis” grega, que, naquele momento, estava deixando de existir, com o surgimento do império de Alexandre o Grande.
    Depois de Alexandre, no mundo grego ou helênico, desenvolveram-se três escolas filosóficas que vão se estender até o fim do Império romano, as chamadas filosofias helenísticas. Todas elas, por caminhos diferentes, chegam a conclusão de que, para ser feliz, o homem deve ser não só autossuficiente, mas desenvolver uma atitude de indiferença, de impassibilidade, em relação a tudo ao seu redor. A felicidade, para eles, era a “apatia”, palavra que, naquela época, não tinha o sentido patológico que tem hoje.
    Prazer e salvação da alma
    Entre os filósofos do mundo helênico, pode-se citar Epicuro (341 a.C./271 a.C.), para deixar claro que essa ideia de “apatia” não significa abdicar ao prazer. O prazer era essencial à felicidade para Epicuro, cuja filosofia também é conhecida pelo nome de hedonismo (em grego “hedone” quer dizer “prazer”). Mas ele deixa claro, numa carta a um discípulo, que não se refere ao prazer “dos dissolutos e dos crápulas” e sim ao da impassibilidade que liberta de desejos e necessidades.
    Com o fim do mundo helênico e o advento da Idade Média, a felicidade desapareceu do horizonte da filosofia. Estando relacionada à vida do homem neste mundo, ela não interessou aos filósofos cristãos como Agostinho de Hipona (354 d.C./430 d.C.),Anselmo de Canterbury (1033/1109) ou Tomás de Aquino (1225/1274), todos santos da Igreja católica. Para a filosofia cristã, mais do que a felicidade, o que conta é a salvação da alma.
    Os filósofos voltaram a se debruçar sobre o tema na Idade Moderna. John Locke(1632/1704) e Leibniz (1646/1716), na virada dos séculos 17 e 18, identificaram a felicidade com o prazer, um “prazer duradouro”. Alguns décadas depois, o filósofo iluminista Immanuel Kant (1724/1804), na obra “Crítica da razão prática” definiu a felicidade como “a condição do ser racional no mundo, para quem, ao longo da vida, tudo acontece de acordo com o seu desejo e vontade”.
    Direito do homem
    No entanto, para Kant, como a felicidade se coloca no âmbito do prazer e do desejo, ela nada tem a ver com a Ética e, portanto, não é um tema que interesse à investigação filosófica. Sua argumentação foi tão convincente que, a partir dele, a felicidade desapareceu da obra das escolas filosóficas que o sucederam.
    Mesmo assim, não se pode deixar de mencionar que, no mundo de língua inglesa, na mesma época de Kant, a ideia de felicidade ganhou lugar de destaque no pensamento político e buscá-la passou a ser considerada um “direito do homem”, como está consignado na Constituição dos Estados Unidos da América, que data de 1787 e foi redigida sob a influência do Iluminismo.
    Egocentrismo e infelicidade
    É também no âmbito da filosofia anglo-saxônica, no século 20, que se encontra uma nova reflexão sobre nosso assunto. O inglês Bertrand Russell (1872/1970) dedicou a ele a obra “A conquista da felicidade”, usando o método da investigação lógica para concluir que é necessário alimentar uma multiplicidade de interesses e de relações com as coisas e com os outros homens para ser feliz. Para ele, em síntese, a felicidade é a eliminação do egocentrismo.
    Mais recentemente, em 1989, o filósofo espanhol Julián Marías também dedicou ao tema um livro notável, “A felicidade humana”, em que estuda a história dessa ideia, da Antiguidade aos nossos dias, ressaltando que a ausência da reflexão filosófica sobre a felicidade no mundo contemporâneo talvez seja um sintoma de como esse mesmo mundo anda muito infeliz.
    Bibliografia
    Abbagnano, Nicola - "Dicionário de Filosofia", Martis Fontes, São Paulo, 2000.
    Berti, Enrico - "No princípio era a maravilha", Loyola, São Paulo, 2010.
    Marías, Julián - "A felicidade humana", Duas Cidades, São Paulo, 1989.
    Antonio Carlos Olivieri Antonio Carlos Olivieri é jornalista e escritor.

    sábado, 27 de outubro de 2012

    O COELHO E O LEÃO Um célebre Psicanalista encontrou-se certo dia no meio da selva, semiperdido. Com a força que dão o instinto e o desejo de investigação, conseguiu facilmente subir numa árvore altíssima, da qual pôde observar à vontade não apenas o lento pôr-do-sol mas também a vida e os costumes de alguns animais, que comparou algumas vezes com os dos humanos. Ao cair da tarde viu aparecer, por um lado, o Coelho; por outro, o Leão. A princípio não aconteceu nada digno de mencionar, mas pouco depois ambos os animais sentiram as respectivas presenças e, quando toparam um com o outro, cada qual reagiu como desde que o homem é homem. O Leão estremeceu a selva com seus rugidos, sacudiu majestosamente a juba como era seu costume e feriu o ar com suas garras enormes; por seu lado, o Coelho respirou com mais rapidez, olhou um instante nos olhos do Leão, deu meia-volta e se afastou correndo. De volta à cidade, o célebre Psicanalista publicou cum laude seu famoso tratado em que demonstra que o Leão é o animal mais infantil e covarde da Selva, e o Coelho, o mais valente e maduro: o Leão ruge e faz gestos e ameaça o universo movido pelo medo; o Coelho percebe isso, conhece sua própria força, e se retira antes de perder a paciência e acabar com aquele ser extravagante e fora de si, a quem ele compreende e que afinal não lhe fez nada. (Tradução: Millôr Fernandes) =-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=


    O COELHO E O LEÃO
    Um célebre Psicanalista encontrou-se certo dia no meio da selva, semiperdido.
    Com a força que dão o instinto e o desejo de investigação, conseguiu facilmente subir numa árvore altíssima, da qual pôde observar à vontade não apenas o lento pôr-do-sol mas também a vida e os costumes de alguns animais, que comparou algumas vezes com os dos humanos.
    Ao cair da tarde viu aparecer, por um lado, o Coelho; por outro, o Leão.
    A princípio não aconteceu nada digno de mencionar, mas pouco depois ambos os animais sentiram as respectivas presenças e, quando toparam um com o outro, cada qual reagiu como desde que o homem é homem.
    O Leão estremeceu a selva com seus rugidos, sacudiu majestosamente a juba como era seu costume e feriu o ar com suas garras enormes; por seu lado, o Coelho respirou com mais rapidez, olhou um instante nos olhos do Leão, deu meia-volta e se afastou correndo.
    De volta à cidade, o célebre Psicanalista publicou cum laude seu famoso tratado em que demonstra que o Leão é o animal mais infantil e covarde da Selva, e o Coelho, o mais valente e maduro: o Leão ruge e faz gestos e ameaça o universo movido pelo medo; o Coelho percebe isso, conhece sua própria força, e se retira antes de perder a paciência e acabar com aquele ser extravagante e fora de si, a quem ele compreende e que afinal não lhe fez nada.
    (Tradução: Millôr Fernandes)
    =-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=

    Um célebre Psicanalista encontrou-se certo dia no meio da selva, semiperdido.
    Com a força que dão o instinto e o desejo de investigação, conseguiu facilmente subir numa árvore altíssima, da qual pôde observar à vontade não apenas o lento pôr-do-sol mas também a vida e os costumes de alguns animais, que comparou algumas vezes com os dos humanos.
    Ao cair da tarde viu aparecer, por um lado, o Coelho; por outro, o Leão.
    A princípio não aconteceu nada digno de mencionar, mas pouco depois ambos os animais sentiram as respectivas presenças e, quando toparam um com o outro, cada qual reagiu como desde que o homem é homem.
    O Leão estremeceu a selva com seus rugidos, sacudiu majestosamente a juba como era seu costume e feriu o ar com suas garras enormes; por seu lado, o Coelho respirou com mais rapidez, olhou um instante nos olhos do Leão, deu meia-volta e se afastou correndo.
    De volta à cidade, o célebre Psicanalista publicou cum laude seu famoso tratado em que demonstra que o Leão é o animal mais infantil e covarde da Selva, e o Coelho, o mais valente e maduro: o Leão ruge e faz gestos e ameaça o universo movido pelo medo; o Coelho percebe isso, conhece sua própria força, e se retira antes de perder a paciência e acabar com aquele ser extravagante e fora de si, a quem ele compreende e que afinal não lhe fez nada.
    (Tradução: Millôr Fernandes)
    =-=-=-=-=-=-=-=-=-=-=

    A feiúra é feia Cecílio*


    A feiúra é feia

    Cecílio*
     
    Apenas a arte consegue criar beleza na feiúra, mesmo sendo, ela, feia. Há um livro monumental, um outro, de Umberto Eco — História da Feiúra — diante do qual, vendo texto e ilustrações, o editor manifestou seu espanto: “Como é bela a feiúra!”. Artistas geniais conseguiram, através dos tempos, compor obras-primas diante do feio. A feiúra, porém — mesmo mascarada pela obra de arte — é feia.

    Agora — que começou a baixar a poeira do “frisson” em relação à novela Avenida Brasil — ainda mais penso nisso. Assisti, por instância de familiares, apenas ao último capítulo do folhetim. Até então, não havia visto sequer uma cena de seus capítulos que foram apaixonando o público. No entanto, ouvia comentários, lia críticas, assistia a debates. Falava-se numa novela que retratava um novo Brasil, uma nova classe média, um novo povo, uma nova nação.
    No entanto, os ecos do que eu lia e ouvia refletiam — a meu entender e pelo conteúdo dos comentários — como que uma apologia do e ao mau gosto. E foi a convicção que me ficou ao ver o último capítulo: a vulgaridade posta em destaque, a mediocridade como parâmetro, a desordem como referencial. E, ao fim, uma mensagem generosa de cordialidade e de compaixão.

    Quanto aos méritos da novela, não os discuto. Folhetins são, também, obras de arte, medíocres ou respeitáveis, mas parte do universo artístico. Todavia, quando se tornam puro entretenimento — comandados pela audiência, que influi no rumo da história e no comportamento dos personagens — a arte é, também, prostituída pelo mercado. Mesmo assim, não discuto os méritos do autor e os de sua produção. Como entretenimento, alcançou o seu objetivo e mereceu os aplausos. Ir além disso, no entanto, é repetir o episódio do sapateiro que, vendo o quadro do pintor — a figura de um homem — lhe advertiu sobre erros nas sandálias. O pintor aceitou a advertência, corrigiu os traços, mas o sapateiro insistiu em opinar sobre outros detalhes. O artista lhe pediu: "Sapateiro, não vá além das sandálias”.

    Penso enquadrar-se nessa perspectiva a tentativa de sociologizar a novela, tendo-a como retrato de um novo Brasil, de uma nova classe. Sapateiros não devem ir além dos sapatos. O Brasil seria pequeno demais, um país sem destino e sem futuro se corresponder ao retrato feito por Avenida Brasil. Ora, claro que há segmentos sociais semelhantes aos do folhetim, mas seria terrível se ele representasse a realidade brasileira. E mais terrível, ainda, se seguirmos essa outra esperteza do mercado em enfatizar que há uma nova classe média, apenas porque surgiram milhões de novos consumidores. Há diferença fundamental entre um cidadão verdadeiro e um consumidor de ocasião. Todo cidadão pode ser consumidor. Nem todo consumidor pode ser reconhecido como cidadão.

    O velho Marx — que começa a renascer das cinzas, revisto até mesmo por economistas ditos liberais — sentenciou: “A cultura dominante é a cultura da classe dominante”. Ora, se a classe dominante brasileira for essa retratada na novela da Globo, em que País nos transformamos, que anseios de nação poderemos ter? A mediocridade — dizem os sábios da teologia — é um atentado ao espírito divino. Um País onde o mau gosto e a feiúra são incensados e apontados como referenciais não pode e nem deve orgulhar-se de si mesmo.

    De equívocos em equívocos, estamos afundando-nos em um abismo cívico e moral. Até recentemente, culpavam-se as elites por todas as mazelas do País. Mas o problema está no inverso: o Brasil tem sofrido por falta de elites, pela ausência e silêncio dos melhores, pelo recolhimento deles. O feio surge quando o belo se apaga. E o ruim se impõe quando o bom se esconde.

    Definir uma nação por classes sociais baseando-se apenas na capacidade de consumo delas é solapar valores e destruir princípios que formam a própria nacionalidade. O Brasil não é Avenida Brasil. Esta foi um simples folhetim inspirado em agrupamentos sociais romanceados e ambientados no Rio de Janeiro. Se for um retrato de um segmento da realidade carioca, que assim seja entendido. Mas que não o transformemos em retrato nacional. Pois, na verdade, a grande luta brasileira, hoje, é enfrentar exatamente a mediocridade, a vulgaridade, a feiúra moral.

    A feiúra pode ser bela apenas como obra de arte. Pois, na sua essência, ela é feia. Não nos esqueçamos de que Humberto Eco — além de sua História da Feiúra — tem a sua História da Beleza. E é na exaltação do belo — desde os rabiscos do homem da caverna — que a humanidade se construiu.
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     * Colunista do Jornal Correio Popular.
    Fonte: http://zelmar.blogspot.com.br/2012/10/a-feiura-e-feia.htmlhttp://correio.rac.com.br/_conteudo/2012/10/colunistas/cecilio/5824-a-feiura-e-feia.html

    sábado, 6 de outubro de 2012

    RUY CASTRO Recado em prosa



    RIO DE JANEIRO - Se estivesse vivo -e, nesse caso, estaria com 85 anos-, Tom Jobim teria sido recebido com clarins nos salões do Riocentro, na abertura da conferência Rio+20. Não por ser o autor de "Corcovado", "Chovendo na Roseira", "Águas de Março", "Borzeguim", "O Boto" e muitos outros sambas que celebram a conservação da natureza. Ou não apenas por isso. Mas por ser um porta-voz da ecologia, desde a época em que, no Brasil, essa palavra tinha de ser procurada no dicionário.
    Na maioria das entrevistas que concedeu, Tom sempre denunciou a destruição da mata e da fauna, a contaminação dos rios, lagoas e baías, o envenenamento do ar e a descaracterização das cidades pelo automóvel e pela política de terra arrasada da especulação imobiliária. Era quase uma ideia fixa, mais até do que a música -sobre a qual, aliás, pouco falava para jornalistas.
    De repente, entre duas frases, Tom desfiava os nomes das diversas espécies de urubu. Ou se queixava:
    "Outro dia fui ao mato piar um inhambu, e o que saiu de trás da moita foi um Volkswagen". Ou, como num passeio que fiz com ele pelo Central
    Park, em Nova York, em 1989 -parecia saber identificar pelo nome cada passarinho americano. Mas a paixão pelo Brasil é que era sua seiva criativa: "Toda a minha obra é inspirada na mata atlântica".
    Conto isso para contrastar com a brutalidade com que Tom era visto nas redações em que trabalhei, no Rio e em SP, durante os anos 70 e boa parte dos 80. Era visto como um chato. "Ih, lá vem de novo o Tom Jobim com aquela mania de ecologia." Ou, diante de minhas repetidas sugestões de uma entrevista com ele, para uma revista que se orgulhava de suas entrevistas: "Não! Tom Jobim é a coisa mais rançosa queexiste!".
    Ainda não percebíamos que ele estava dando em prosa o mesmo recado que dava nas canções.